Desconhecimento sobre o funcionamento do processo contábil e da normatização subjacente sugere que seria possível criar uma determinada realidade econômica através da contabilidade
O termo “contabilidade criativa” tem ganhado certa notoriedade entre participantes do mercado em razão dos recentes casos de fraudes e inconsistências ocorridas no Brasil e no mundo. Em alguns casos, tal termo tem sido empregado como uma espécie de “formula mágica” existente dentro da contabilidade, segundo o qual seria possível alterar a realidade econômico-financeira de uma empresa. Nada mais equivocado.
Inicialmente, é preciso registrar que a contabilidade não “cria” nada. Ao contrário, ela apenas reflete uma realidade existente a partir de normas (regras, padrões) pré-determinadas. As demonstrações financeiras, também chamadas popularmente de “balanços”, podem ser vistas como produto final de um processo que envolve as etapas de reconhecimento, mensuração e divulgação de eventos e transações econômicas celebradas por uma empresa em dado período. Elas revelam o resultado gerado pela sociedade, sua posição patrimonial e financeira etc. A contabilidade conta a história da empresa por meio de um denominador comum, a moeda.
Nesse contexto, se nada se cria – apenas se evidencia o que ocorreu –, não há como existir uma “contabilidade criativa”. E como dito, os balanços precisam ser elaborados em conformidade com os padrões contábeis. Se isto não ocorreu, houve erro ou fraude (conduta dolosa). Veja-se, trata-se de algo binário, 0 e 1. Não existe um “meio termo”, não há como criar algo fictício e ao mesmo tempo estar em conformidade com o ordenamento contábil. Se a empresa contabilizou uma receita que não existia, tratou a despesa como constituição de ativo ou escondeu uma dívida, ela não seguiu as “leis” contábeis; simples assim.
As transações e eventos refletidos nas demonstrações financeiras precisam estar respaldados e suportados em eventos econômicos reais. Caso contrário, e na hipótese de uma ação dolosa por parte da administração da sociedade, estaríamos diante de uma fraude. E isso não tem nada a ver com “contabilidade criativa”.
Obviamente, é preciso reconhecer que existe sim subjetividade envolvida na elaboração das demonstrações financeiras; a contabilidade não é uma ciência exata. De fato, o estabelecimento das políticas e estimativas contábeis envolve julgamento profissional que é algo inerente à profissão.
E isso é absolutamente normal, uma vez que os balanços são uma “simplificação” de uma realidade complexa. Sintetizar a realidade empresarial complexa e apresentá-la em folhas de papel envolve escolhas e o estabelecimento de premissas. O “mapa” não é o território, ele é uma representação, uma redução que visa representar o território.
Do mesmo modo, é preciso reconhecer que existem escolhas e julgamentos envolvidos na elaboração das demonstrações financeiras. Em alguns casos, inclusive, pode haver mais de uma única forma de estar em conformidade com o ordenamento contábil. Veja-se, por exemplo, o tratamento previsto para a avaliação das chamadas propriedades para investimento (investment property), que são os imóveis detidos pelas companhias com objetivo de valorização ou obtenção de renda de aluguéis. A norma aplicável permite que a sociedade escolha a base de mensuração destes ativos: custo ou valor justo.
Neste exemplo, não há qualquer contabilidade criativa se a empresa escolheu uma ou outra forma de avaliação de suas propriedades para investimento; afinal, ambas são aceitas pela regra vigente. A fraude consiste em fazer algo não previsto na normatização, “burlar a lei”.
Em conclusão, se o cartógrafo manipulou intencionalmente o mapa, temos um problema de conduta humana e não na ciência da cartografia. A observância das normas contábeis na elaboração das demonstrações financeiras não é uma discricionariedade dos administradores e tampouco uma decisão negocial. A divulgação de informações financeiras fictícias não encontra guarida no ordenamento e na doutrina contábil.
Nesse sentido, não há como extrair informação relevante dos balanços sem a devida compreensão de como ele foi construído, sob quais normas e regras contábeis. Afinal, da mesma forma que o conhecimento jurídico é uma condição necessária para se analisar um processo judicial, a compreensão das normas contábeis é fundamental para que o analista possa separar o “joio do trigo”.
*Fernando Dal-Ri Murcia é professor da FEA/USP e Diretor de Pesquisas da Fipecafi.